12 de setembro de 2014

sobre joão antônio donati




joão morava em inhumas, em goiás. tinha apenas dezoito anos e uma vida cheia de sonhos e sorrisos pela frente. na terça feira (nove de setembro), joão saiu de casa e não mais voltou. na quarta feira, seu corpo sem vida foi encontrado, abandonado num terreno baldio qualquer. estrangulado. brutalmente assassinado. suas pernas e pescoço, quebrados. em sua boca, um bilhete. "vamos acabar com essa praga".

apesar de todas as óbvias circunstâncias, praticamente todos os veículos de comunicação afirmam haver suspeita de que o crime tenha motivação homofóbica. o delegado responsável pelo caso, humberto teófilo, informou que ainda será instaurado um inquérito para apurar o motivo do crime. nos comentários dos sites de notícias, lê-se uma empatia que só é vista em nossa morte: nossa dor cotidiana só é tida como legítima quando morremos. (e olhe lá!)

o perfil de joão antônio no facebook, que antes era permeado por fotos sorridentes, conversas divertidas com os amigos e imagens simbólicas contra homofobia, é hoje tomado pela tristeza de recados incrédulos de família, amigos e desconhecidos indignados com a morte do tão novo rapaz.




e mais uma vida foi tirada. mais um sorriso foi apagado. mais inúmeras vidas perderam o sentido com a morte de joão. mais um de nós pra conta da homofobia institucionalizada.

e poderia ser eu. poderia ser meu melhor amigo. poderia ser meu namorado. poderia ser cada um dos amigos com quem eu divido um lar. poderia ser alguma das muitas pessoas próximas a mim. poderia ser minha mãe debruçada sobre um caixão carregando meu corpo frio e indiferente. poderia ser a família de cada uma dessas pessoas a ter sido tão brutalmente dilacerada pela homofobia.

nosso sangue, mais uma vez, está nas mãos dessas pessoas. você que riu do coleguinha gay na escola, você que faz (e ri de) piadinhas que nos desumanizam, você que usa "viado" ou "bicha" como xingamento, você que diz que algo é "muito gay" com intenção de ofender, você que assedia moralmente o "viado" que vê na rua, você que nos tira o direito de casar e de viver normalmente com nossos amores, você que acha que lei contra homofobia é privilégio, você que faz coro ao que dizem os políticos fundamentalistas, você que neles vota, você que acredita em heterofobia, você que "não tem nada contra, mas", você que acha que somos todos iguais: nosso sangue sujo está nas suas mãos limpas.

não passarão.

31 de maio de 2014

sobre militância


não deslegitimo o direito de vocês de acharem minha militância um saco. eu sei que vocês preferem viver suas vidas, transar e ser felizes a problematizar, entender e desconstruir opressões.

eu sei, porque, sempre que compartilho ou escrevo algo minimamente relacionado a militância, recebo backlash via comentário, inbox, direct message, mention, sms, telegrama e inúmeras indiretas em todas as redes sociais possíveis e imagináveis sobre o quanto eu sou chato por isso. mas vocês sabem de uma coisa?



enquanto vocês podem fechar a aba do navegador no meio de uma discussão, meu melhor amigo, negro, vai continuar sendo olhado torto na rua e vai continuar sendo visto pela polícia como bandido em potencial.

enquanto vocês podem me dar unfriend, minha melhor amiga, trans, vai continuar tendo que aguentar gente desconhecida perguntando sobre sua genitália e tendo que mendigar todo dia para que a chamem pelo seu nome.

enquanto vocês podem cancelar meu feed de notícias, minha irmã, mulher, vai continuar não podendo transar com quem quiser sem ser chamada de "puta", nem podendo andar 200m sozinha, da parada de ônibus até a porta de casa, por medo de ser estuprada.

enquanto vocês podem me deletar das suas vidas, eu, que sou gay, vou continuar não podendo andar na rua à noite sem medo de apanhar e vou continuar não falando com meu pai, porque ele já disse com todas as letras que tem vergonha de um filho que dá a bunda.

...

enquanto vocês, privilegiados de alguma forma, podem fechar os olhos pra tudo que acontece, pessoas continuam sofrendo todo tipo de violência simbólica e física, todos os dias, só por existir. vocês podem fechar os olhos, mas pessoas continuam morrendo. isso, sim, é chato.

vocês não sucederão em me silenciar.

29 de novembro de 2013

sobre orgulho


oi, pai.

sabe, desde que eu me notei diferente - ou melhor, desde quando o mundo me mostrou que o meu diferente era abominável -, eu passei a me esforçar bastante para ser o melhor em tudo que eu fizesse. como resultado disso, eu sempre ostentava um boletim extraordinário, era o melhor aluno da sala, era educado com seus amigos que falavam alto demais, tentei ser bom - juro! - no seu esporte favorito e prometi que nunca fumaria ou beberia na vida (promessas que só quebrei aos dezoito anos de idade). eu até segui por três anos a mesma carreira que você seguiu durante trinta e cinco anos. tudo porque eu sabia que precisava ser bom para ser amado "apesar de ser gay".

do Tumblr Criança Viada


essa obsessão com a perfeição me perseguiu por muito tempo e foi culpada de muitas frustrações na minha vida. com o tempo, fui cansando dessa obrigação de ser sempre o melhor. eu queria poder fracassar, eu queria tirar notas medianas, eu queria poder ficar de recuperação, eu queria poder ser chato às vezes, eu queria poder ser medíocre. então eu percebi que eu não era esse filho "perfeito apesar de gay" que você tanto se esforçou para enxergar. eu não era só o filho que era militar, ou o filho que só tirava notas boas... eu queria que você sentisse orgulho do seu filho que ama outro homem. do seu filho que se levanta contra a homofobia todos os dias. do seu filho que ama ser o que é. do seu filho de verdade. do seu filho que é gay! porque o filho do qual você tem orgulho não existe.

eu não quero ser seu totem de sucesso. não quero que minhas conquistas sejam a única coisa que me salva de seu total desprezo. não quero que minhas vitórias se resumam a um porém. não quero que meu sucesso minimize minha sexualidade.

seu orgulho só me mostra o quanto eu tenho que ser o melhor para ser amado. desculpa, mas eu não quero ter que me esforçar ad exaustão para ter um pouco do reconhecimento de que eu não sou um mau filho. eu quero que você sinta orgulho e amor pelo filho que eu sou. sem condições e sem apesares. desculpa, eu não quero esse orgulho, eu quero seu amor.

com amor, seu filho gay. 



26 de novembro de 2013

sobre ser criança gay


oi, pai, tudo bom?

lembra quantas vezes você me mandou andar direito? ou quantas vezes você deliberadamente me mandou parar de rir, porque não era assim que ria um menino? ou quantas vezes você questionou-me se eu era "um homem ou um prato de papa"? ou me fez fazer coisas que eu o-di-a-va, como entrar pro time de futebol de salão da escola, sob o pretexto de que eu precisava fazer algum exercício físco? ou quando me disse para não dançar desse jeito, ou ouvir tal tipo de música, ou mexer as mãos assim, ou sentar assim, ou deitar assado... lembra, pai, de todas essas vezes em que você tentou me dizer como eu deveria agir para me tornar um filho do qual você teria algum orgulho?

do Tumblr Criança Viada



você muito provavelmente não lembra. ou, se lembra, lembra como alguém que estava fazendo algo correto. como você mesmo disse, alguém que estava tentando mostrar "o caminho certo"... guess what? você estava 100% enganado. não poderia estar mais enganado. você cagou meu relacionamento com meu próprio corpo. você matou a naturalidade com a qual eu lidava com minha sexualidade. você vilanizou minha liberdade. você me fez prometer pra mim mesmo várias vezes que eu mudaria para que você pudesse me amar como você ama sua outra filha, que é hétero. você me fez abrir mão, durante muito tempo, do meu amor próprio. você me fez sentir a obrigação de ser sempre melhor que todo mundo para que eu pudesse sentir um pouco do que era ser amado e querido. você me fez sentir como se tudo o que eu sentia dentro de mim era errado. você me fez chorar e tentar suicídio inúmeras vezes. você me fez sentir coisas que nunca sentira antes, como culpa, vergonha e nojo de mim mesmo. você destruiu minha infância.

não que todas essas vibrações negativas viessem só de você. muito pelo contrário. vinham de todo lugar. da escola, da igreja, da rua. mas nenhuma foi tão efetiva quanto a sua. receber ódio de desconhecidos é fichinha, quando se tem o ódio dormindo no quarto ao lado, sendo destilado 24/7.

e eu não consigo olhar pra sua cara e não lembrar de tudo isso. por mais que você [ache que] tenha me aceitado (assunto sobre o qual conversaremos posteriormente, não se preocupe), por mais que você converse abertamente sobre minha sexualidade, por mais que você ache que "agora está tudo bem"... eu honestamente não consigo apagar todos os traumas e más lembranças que você me causou. eu não consigo me sentir plenamente bem perto de alguém que, durante tanto tempo, me diminuiu e humilhou por ser diferente. e não, isso tudo não é "drama" - como você e minha mãe sempre diagnosticaram minha depressão.

desculpa, mas você não tem a mínima ideia do que fala. ou do que me fez passar. ou da falta que eu sempre senti[rei] de seu amor. e, pelo visto, nunca vai entender nada do que eu estou falando. porque supostamente, pra você, é tudo "muito difícil".

com amor, seu filho gay.